domingo, 9 de outubro de 2016

Testemunhas

Ao assistir ao filme Dança comigo, a fala de uma das personagens me chamou atenção. Numa cena Beverly Clark (Susan Sarandon) explica porque as pessoas se casam: "Porque precisamos de alguém que testemunhe nossa vida.  Com bilhões de pessoas no planeta o que a vida de alguém significa? Mas no casamento você promete cuidar de tudo. As coisas boas, as ruins, as terríveis. As coisas mundanas... Tudo isso, o tempo todo, todos os dias. Você está dizendo: "sua vida não passará despercebida, porque eu vou perceber, sua vida não passará sem testemunho, porque eu serei sua testemunha."

Pensando nisso, me lembrei de uma história que aconteceu dias antes.  No centro de Taguatinga, um trânsito frenético do fim da tarde e lá estava eu esperando o sinal fechar, agarrada a um poste, enquanto as outras pessoas se arriscavam no meio do vai e vem dos carros. De repente um senhor bem idoso chegou perto de mim. Perguntou se eu estava com medo, se queria viver muito. Disse que faria 70 anos, tinha trabalhado não sei quantos anos pro governo, que sua mulher faria 65 anos de idade e eles fariam 45 de casamento. Eu disse a ele que isso era muito bom e que faltavam apenas cinco anos pra comemorarem bodas de ouro e continuei olhando pra faixa. Ele insensível a minha pouca atenção, tirou da carteira uma foto de sua senhora me contando que ela havia ido ver os pais no Ceará. Eu disse que era bonita (não menti), me admirei dos pais ainda estarem vivos e permaneci um tanto indiferente, me lembro.

Fiquei meio sem jeito de aquele senhor estar me contando sua vida toda no tempo em que o semáforo demora a ficar verde.  Abriu o sinal.  Disparei, e ele continuou andando ao meu lado, conversando. Eu até andei mais devagar porque não quis ser grosseira ou deixá-lo falando só, porém tive que dobrar a esquina e acho que ele tinha que seguir em frente; fiquei aliviada porque a gente sempre acha que essas pessoas são um pouco loucas; depois fiquei me sentindo mal porque quando eu tive que seguir em outra direção, nem olhei pra trás pra me despedir ou ao menos sorrir.

Agora me pergunto por que aquele senhor abordou uma estranha num sinal de trânsito pra lhe contar um pouco da sua vida, do seu cotidiano. Será que estamos tão insensíveis e indiferentes assim? Que não conseguimos nos escutar, nos falar mais? Dividir nossos pequenos dramas, comédias e romances cotidianos?  Falta muita coisa nesse mundo estranho, mas também falta afeto, cumplicidade, pessoas dispostas a dividirem uma com as outras essa imensidão que é viver, compartilhar essa humanidade que transborda em cada um de nós. Precisamos ser testemunhas umas das outras, com generosidade.
E se alguém também me perguntar por que eu venho contar minhas  amenidades aqui; de hoje em diante direi que  também estou conversando com um estranho, esperando o sinal ficar verde, pra continuar.

(um texto para recordar. Escrito em 2009 com alterações) 

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